sexta-feira, março 31, 2006

Sorte malvada

Um pequeno apartamento de três assoalhadas, sem terraço nem varandas, numa cidade banal.São dez da noite e Maria já está comodamente sentada no sofá da sala a ver a sua novela favorita.Está feliz porque o marido foi ver um jogo de futebol que, segundo as palavras dele, "só dá na televisão dos ricos" e assim deixa-a sossegada.Se ele estivesse em casa, passava a vida a trocar de canal e não a deixava ver nada de jeito.O costume!
O filho de quinze anos está a trabalhar no computador. Ao intervalo da novela, Maria vai espreitar o filho e pensa que o rapaz deve ter uns trabalhos de casa muito divertidos, pois não pára de rir para a máquina. Aquilo é demasiado complicado para a cabeça dela.Quando esteve desempregada, ainda tentou fazer uma formação de informática no centro de emprego, mas desistiu no segundo dia. Entretanto, arranjou um novo emprego como ajudante de costureira e esqueceu completamente a ideia. Entende-se melhor com agulhas e linhas.Gosta de mexer nos tecidos, sentir as texturas e o toque.A patroa faz vestidos tão bonitos para as senhoras da alta.Se ao menos me saísse o totoloto, pensa, mandava logo fazer meia dúzia deles.Já aqui a vizinhança não se ria mais de mim, não!
Nestes serões em que se encontra sózinha, Maria pensa na vida. Na sua vida, que em nada se parece com a das senhoras dos filmes da televisão.As cabras é que têm sorte, diz quase em voz alta.A Natércia do prédio ao lado, deixou o marido, agarrou-se a um vendedor imobiliário ou lá que é e...olha já tem carta e carro e tudo do bom e do melhor em cima do pelo.A vida está má é para as sérias e para quem trabalha.
-Ò Pedro! Já acabaste o trabalho? Vai mas é beber um copo de leite e deita-te , que amanhã entras às oito!
Pois sim! Nem o filho me ouve.Desconfio que se me saisse o euromilhões, punha logo o rapaz num desses colégios bons e fazia dele um doutor como deve ser.Ai, vida, vida, que é mais curta que comprida!Ainda bem que amanhã é sábado e não preciso de ir para a patroa.Tenho tanto que fazer cá em casa.Olha! Vai dar o sorteio do euromilhões...deixa cá assentar os números para mostrar ao meu Zé.Ele está lá entretido com o jogo, nem deve ver nada disto.
Maria rascunha os números no envelope da conta da electricidade e recosta-se no sofá .Tanta publicidade!Quando esta novela acabar, não me meto a ver outra.Isto acaba tão tarde.Sorte malvada!
-Ó Maria, acorda, mulher! Sempre agarrada à porcaria da televisão. Mas que é isto aqui? Os números do...bem....parece que estou a reconhecer estes números...pois..o dia dos meus anos... o mês.. o dezanove do ano...mais o dia dos anos do meu pai...ai....ai...ó mulher! Ò mulher acho que ganhámos o euromilhões!Acorda, Maria! Vai lá buscar o papel que te dei para registares.Deixei-te isso aí de manhã, antes de ir para o trabalho. O boletim e cinco euros para pagares.
-Ai, Zé...os cinco euros. !Aqueles que estavam em cima da bancada da cozinha? Ai minha nossa senhora, nem reparei que tinha lá o papel do jogo por baixo.Tu é que costumas sempre jogar.Os cinco euros gastei-os para comprar os carapaus que comemos ao jantar, homem de Deus!Há uma semana que te andava a pedir qualquer coisinha para a ajuda da casa...

quarta-feira, março 29, 2006

Vício

Estava sentada num daqueles pequenos bares,dos raros locais onde se pode fumar no aeroporto de Amesterdão, a saborear um cigarrito depois de uma quantidade de horas em voo azul, quando ela se aproximou de mim.

-Não me diga que se pode fumar aqui?, perguntou-me num perfeito inglês.É uma vergonha, mas com esta idade , não consigo largar os cigarros.

Vamos chamar-lhe Mrs. Smith, para facilitar as coisas, porque não cheguei a saber o seu verdadeiro nome. Acontece que a Mrs. Smith estava em trânsito de Londres para o Borneu, onde iria passar uns dias com o seu único filho,engenheiro a trabalhar nessas paragens.Pequena, franzina e já com sessenta e muios anos, a senhora inglesa procurava nervosamente na carteira uma caixinha de fósforos, já com o cigarrito a tremer-lhe na boca.

Contou-me que sempre fora fumadora, mas que depois de aposentada, ainda mais fumava, para aborrecimento da família e do seu médico.

-Ando sempre de cigarro e chávena de café na mão desde que deixei de trabalhar.Tenho aqui um problema na perna, o médico diz que é má circulação...mas que quer? Não consigo largar o tabaco.

Quando Mrs. Smith se afastou, fiquei a pensar, por entre nuvens azuis, na sua conversa.Também eu fumo há muito tempo. E é verdade que desde que deixei de trabalhar fora de casa, também me vejo muitas vezes com uma chávena de café na mão.Não sou assim tão diferente de Mrs.Smith.Uns anitos mais nova e é tudo.

Que isto do tabaco é tremendo. Em novas, incitavam-nos a fumar, porque era chique, porque era moderno, porque dava status e ar de independência feminina. Pregaram-nos o vício. Durante uns anos bons, ninguém nos aborreceu e agora deram nisto. Eu sei que o tabaco não me faz nada bem, mas, meus amigos, tenham dó, já ando com cigarros na mão há demasiados anos para largar. A não ser que apanhe um susto daqueles... mas como sempre achamos que o mal só acontece aos outros... lá vai mais um preguito!

Aviso:

O Tabaco Mata. Não comecem a fumar!

Dia e noite

O dia só começa
no aveludado sussurro da noite,
no acetinado brilho das estrelas,
no mar cúmplice que se espraia ao longe.
Secreta leitura de mãos.
Clandestinos textos.
Poemas.
As sombras vestem-se de desejo
ao desnudar a ausência de suas vestes frias.
Assim se cumpre o ritual da saudade.
Alquimia de corpos famintos.
Fusão feiticeira de almas sedentas.
Magias.
É sempre na noite que o dia se ilumina,
paramentando a Paixão com túnicas de fogo.
Longas estradas desbravadas na textura da pele.
Céus abertos nos trilhos fantasiados da mente.
O dia só é dia quando a noite acontece.

terça-feira, março 28, 2006

Efémera graça


Vivia como sempre vivera.

Com um pé assente na terra

e outro dançando no ar.

Chegava a deixar-se voar,

fazia-se borboleta colorida

e imaginava-se feliz.

Nessa efémera graça.

Nessa volátil e frágil quimera.

Anoitece sobre a cidade



O Tejo.
Os barcos.
Prometidas viagens
ao mundo quimérico do romance,
dos tangos e do champanhe.

Lá vai mais um navio para as marés de África.
Adeus, lenços brancos !Adeus! Adeus!

O Sol arde neste instante.
Rios de lava sobre as vagas indolentes.

E o céu. A primeira estrela!
Um esboço de lua frágil e doce.

Anoitece sobre a cidade
e sonha-se o amor nos circulares voos das gaivotas.

Grita-se a paixão à brisa marinha,
Chama-se por um nome.
Aguarda-se o eco.

Silêncios.
A noite virá cobrir a Ilusão com seu manto de veludo negro.

O mar. O Tejo.

Gaivota ferida

Sentia que perdera as asas, as pernas, o cantar.

Deitava-se e aguardava no silêncio , que o sono lhe trouxesse uma viagem.

Planeava itinerários,folheava atlas mentais,mapas e cartas de perdidos navegadores.

Acordava sempre no seco areal.
Sem asas, sem pernas, sem cantar.

segunda-feira, março 27, 2006

Textos e pretextos

Escrever um texto sem pretexto, quando tudo pode ser pretexto para se escrever.

Tenho na gaveta, quantidade de escrita que nunca foi lida.Estou segura que este blog será pretexto para a publicar e para a criação de mais textos.