sexta-feira, abril 28, 2006

Alma de Rosa

Ilustração: L'Ame de Rose - Art Print Vintage

Três degraus de pedra escurecida .
Um velho muro.
Musgos centenários.
E os mesmos passos.
Os mesmos gestos
sempre.
Rosa, no seu roupão de seda.
Rosa no jardim ao crepúsculo.
Rosa ama.
Rosa chora.
A alma de Rosa perde-se no tempo,
esquecida das horas.
Rosa sem alma
rega as sua rosas com lágrimas.

quarta-feira, abril 26, 2006

Manhãs

Dimanches à La Rochelle- Francine Van Hove
Dulcíssimas manhãs,
feitas de chá e leitura,
onde a paisagem cercã
exala fruta madura.

terça-feira, abril 25, 2006

Os cravos do Poeta



É para ti, meu filho,que hoje canto !
Canto por já não teres de forrar livros a papel pardo.
Canto por não teres de esconder os teus poemas.
Canto por não teres sido obrigado a matar.
Canto por não teres sido preso.
Canto por não teres sido torturado.
Canto por não teres sido obrigado a fugir.
Canto por não teres sido morto.
São para ti, meu filho,
os cravos do poeta,
os cravos de Abril !
Porque estás aqui,
vivo e feliz :
LIVRE na tua escrita!
Escrevo em memória da dor e das lágrimas de todas as mães, que, ao contrário de mim, não tiveram a felicidade de dar á luz depois do 25 de Abril.


segunda-feira, abril 24, 2006

Apanhando flores

Tela de Jules Hervé - Apanhando Flores

Cálidas tardes

de perfumados dias.

Rosmaninho petiz,

no regaço das comadres,

lavanda, alfazema,

p'ró linho das tias,

Cálidas tardes

nesse campo jardim,

longe das comadres,

segredavas assim:

Bem me queres

bem te quero

quero-te para mim!



domingo, abril 23, 2006

Diluições



Como uma pena leve,

diluições de pele,

num pálido papel.

Aí, onde as rosas secaram já.

Melodias

Há uma melodia suave no ar.

Talvez um piano tocando no parque.

Uma mágica doçura.

Nostalgia suave.

São estes meus dedos

musicalizando nas teclas

em tardes domingueiras.

Toco-te poemas de amor.

Meu amor, quando tu não estás.


sábado, abril 22, 2006

Itinerários




Um itinerário breve entre a casa e o café. Um percurso urgente entre um resto incerto de sono e a certeza da vigília. Talvez o percurso diário, repetidamente igual e sempre diferente, entre a morte cerebral e uma esperança de vida.

Levanto-me. Deambulo pelo corredor e chego à cozinha. Copo de leite quente. Regresso ao corredor. Paragem na casa de banho. Um duche morno e depois a indecisão da escolha. Saia ou calças? Calças. Por ser mais simples. Visto-me. Um relance no espelho. Toque de escova no cabelo. Uma nuvem de maquilhagem. Devagar. No silêncio da casa. Mesmo muito devagar. Gestos lentos e esforçados. Mente confusa resistindo à invasão dos sonhares nocturnos. Mente que se nega a pensar.

Está na hora. Saio de casa. Fecho a porta. Aguardo a chegada do velho elevador. Cansado e cheio de manias. Lá me leva aos solavancos até ao rés-do-chão. Mal reparo nos vasos de plantas com os quais a nova vizinha do quarto andar atafulhou a entrada do prédio. Desvio-me a custo das folhas da pata de elefante, que invade o meu espaço.

Chego à rua e viro à esquerda. O passeio não terá mais de duzentos metros de comprimento. Longo caminho até ao café da esquina.

Sigo cabisbaixa e soturna para não ter de cumprimentar ninguém. A calçada magoa-me a planta do pé direito. Penso que terei de mandar pôr meias solas novas nos sapatos. Esta terra está cheia de calçadas irregulares.

Continuo, numa marcha lenta, evitando as espinhas de carapau e os bagos de arroz amontoados no cantinho onde a Dona Quitéria alimenta os gatos vadios cá do bairro. A Dona Quitéria levanta-se de madrugada, mais fresca do que uma alface. Sempre elegante. Sempre de saltos altos.

Do outro lado da rua, há um parque que ainda dormita. Esta noite foi ventosa e o único sinal de vida é um enorme chapéu branco, que escapou da esplanada e dança, liberto, na relva.

Os carros rodam na faixa dupla e aproximam-se a alta velocidade da rotunda. Aqui são obrigados a parar para mais lentamente se dispersarem pelas ruas da cidade , o que me permite atravessar sem pressas.

Chego ao destino. O café mais frequentado do quarteirão. Fervilha de gente. A mania que esta malta tem de correr. Chega a ser irritante. Muitos deles apenas têm urgência de marcar o ponto no emprego, para mais rapidamente se sentarem e adormecerem frente ao serviço. Histórias… outras histórias.

Peço uma bica. O café quente bate-me fundo na garganta seca. O ritmo cardíaco começa a dar sinais de vida. Chego a sentir os neurónios a acenderem um a um, quais lâmpadas fluorescentes.

Reacordo. Saio do local e deixo que o vento sopre de mim a restante letargia .

A calçada parece mais certinha. Talvez os sapatos aguentem mais uma semana ou duas. Atravesso a faixa de rodagem saltitando por entre os carros. De longe, retribuo o aceno que a Dona Quitéria me faz, rodeada pelos seus gatitos adoptivos, e sorrio.

No jardim, as crianças começam a chegar para a disputa dos escorregas e dos baloiços . O dono da esplanada voltou a prender o chapéu e um vendedor de balões parece compor um gigantesco ramalhete colorido no meio do relvado. Ligaram a rega e o cheiro a terra fresca espalha-se pelo ar.

Regresso levemente a casa. Afinal, as plantas da vizinha até dão uma certa graça à entrada do prédio. Graça e vida!

Como essa vida que todos os dias reencontro na minha chávena de café.






palavras


Hoje fechei as palavras a cadeado,

para as impedir de voarem por aí aos sete ventos.

São palavras de amor,

como querido e amo-te.

Quero-as guardadas só para ti.

quinta-feira, abril 20, 2006

A nossa casa

Certos dias, pelo cair da tarde, Inês gostava de se sentar debaixo do alpendre, numa silenciosa observação da natureza. Em meados de Abril, as laranjeiras do quintal adornavam-se de frutos doirados e de pequeníssimas flores. As níveas pétalas espalhadas pela cercania , lembravam paradoxalmente um resto de Inverno, que as tangerineiras, a nogueira, o damasqueiro e o loureiro, logo negavam no seu esplendor primaveril. O tanque da roupa há muito que deixara de cumprir o seu destino e servia agora de abrigo a famílias de insectos e de folhas mortas e só o velho poço continuava a dar água para a rega. Cresciam os cravos túnicos, as cravinas, as despedidas de verão, as rosas, os narcisos e as túlipas de permeio com os coentros, a salsa , várias qualidades de alface, pés de couve , algumas favas e muitas urtigas. Esta mistura curiosa de árvores, plantas, flores e legumes, dava ao quintal a impressão de uma certa liberdade selvagem, onde cada coisa nascia, florescia e morria sem necessidade de grandes intervenções humanas. Até o próprio tempo, ora fresco, com ventos sibilando da terra, “vento de igreja, prenúncio de chuva” como dizia o tio Alfredo, ora com raios solares vivos e quentes apetecendo passeios pelos pinhais, desobedecia a todas as regras.

Inês deixava cair o livro sobre o regaço, recostava-se na cadeira e semicerrava os olhos. Imaginava o casal no tempo dos avós e dos tios, quando o pátio ainda não tinha sido cimentado e as galinhas debicavam restos de sementes e de migalhas pelo chão. Imaginava a criançada a jogar ao arco e à macaca, enquanto as mães esfregavam a roupa na pedra do tanque e o cheiro a sabão azul e branco se espalhava pelo ar. Até lhe parecia ouvir ainda os cãezitos, que ladravam aos poucos carros e carroças que passavam na estrada principal e o sino da igreja a tocar para o terço do mês de Maria..

Nestas tardes, Inês olhava o marido, que parecia sorrir nos seus sonhos de pequenas sestas, meio sentado, meio deitado, no cadeirão a seu lado e pensava que, um dia, quando se reformassem e tivessem alguns netinhos, haveriam de restaurar o velho casal. Este local respirava a paz dos anjos e precisava das gargalhadas de pequenos malandrecos para lhe devolver a alegria.

- Amor, está na hora de irmos para casa. A rapaziada deve ir lá jantar como todos os domingos.

- Vamos sim, respondia Inês. Vamos até casa.

E na sua cabeça rodopiava a ideia, cada vez mais insistente, cada vez mais feita certeza de que “ a nossa casa é aqui, meu querido”.

sexta-feira, abril 07, 2006

Visitas




- Podem vir visitar-nos. Se isso for da sua vontade. Na nossa idade, gosta-se de visitas. Não de todas as visitas, é claro. Há visitas que já nos cansam. A nossa querida F. por exemplo. Lembras-te da querida F., não lembras Miguel? Sempre que vem cá casa remexe-me tudo. Da última vez queria por força que eu encontrasse um retrato da nossa prima Etelvina, tirado quando fomos fazer aquela excursão a Viana. Eu bem lhe disse que não tinha retrato nenhum dessa excursão, que pedisse à Rosário, mas ele insistiu tanto, que acabei por me aborrecer e já nem a convidei para ficar para o cházinho. Deve ter sido por altura do Natal... Sim! Foi mesmo no Natal. A querida F. até me trouxe um paninho com uma barra de crochet que ela fez no centro. Não te lembras, Miguel? Pois... se calhar não te lembras, querido. Mas como te dizia, penso que eles podem vir visitar-nos. Na nossa idade, gosta-se de visitas. Mas é bom que nos avisem. Podem deixar um bilhetinho na caixa do correio. A porta do prédio está sempre aberta. Está sempre aberta desde que aquele teu amigo, o senhor Morais veio cá tirar a fechadura velha, porque já nos custávamos a abrir a porta. Tirou a fechadura velha e nunca mais voltou para colocar uma nova. Pobre senhor Morais, um ataque assim tão de repente, ele que andava tão ligeirinho. Ninguém podia adivinhar, não é Miguel? Se não tinha-se deixado ficar a fechadura velha. Mesmo perra sempre a porta se mantinha fechada. Agora qualquer um entra aqui. Ontem, quando saí para comprar o pão, encontrei dois miúdos na entrada do prédio. Não eram daqui. Não achas estranho, Miguel? Pode ser perigoso. Bem, mas se eles quiserem, podem vir visitar-nos, mesmo sem avisar. Na nossa idade, gosta-se de visitas. Podia fazer um cházinho. Olha, Miguel, aproveitava para estrear o paninho com barra de crochet , que a querida F. me ofereceu pelo Natal. Não é que eu precisasse de mais um paninho de crochet. Tenho as gavetas cheias de paninhos e alguns bem bonitos, bordados à mão pela mãezinha e por mim. Elas andam sempre a cobiçar-me o enxoval da mãezinha. A mãezinha era umas mãos de ouro, não era Miguel? Cansou a vista. E eu já estou como ela. Quando acabar esta toalhinha de mãos, não começo mais nada. A não ser que elas me peçam. Podem vir visitar-nos e pedir que eu faça alguma coisa para o enxoval da mais velha. Quando vêm cá casa pedem-me sempre coisas. No Verão passado ainda lhes fiz umas barrinhas para um conjunto de casa de banho. Deram-me um trabalhão a fazer, não deram, Miguel? Se calhar, ainda vão para lá dizer às vizinhas, que já não sirvo para nada. Miguel, achas que eles dizem mal de nós? A nossa querida F. fez-me entender qualquer coisa. Bem, mas isso não interessa nada, pois não, Miguel? Podem vir visitar-nos sempre que quiserem. Serão bem recebidos. Na nossa idade, gosta-se de visitas. Olha Miguel, o romance da televisão já acabou. Vou só arrumar o trabalhinho e enfiar-me na cama. E tu, anda daí, Miguel, vem para a cama também que ficas melhor. Há mais de uma hora que estás aí a ressonar na poltrona. Tens de ter cuidado com os teus rins. A ver se acordamos cedinho. Pode ser que eles nos venham visitar. Na nossa idade, gosta-se de visitas. Não é verdade, Miguel?

- Que disseste, querida? Eles vêm visitar-nos? Que bom! Na nossa idade, gosta-se de visitas, não é verdade, Madalena? Não de todas as vistas, claro. Há algumas bem maçadoras. Essa tua querida F., por exemplo. Diacho de mulher! Quando vem cá casa, não se cala nem por um segundo.

domingo, abril 02, 2006

Só sei que nada sei

foto Casa da Imagem

-Quando for grande, quero ir para a escola como as primas, para aprender a ler e a escrever e fazer desenhos muito lindos.

E subitamente, senti-me pequenina.
Ao passear por aí estes olhos míopes e cansados ,mas nem por isso menos atentos,dei com textos tão maravilhosamente escritos que me senti de novo aluna da primeira classe ,boquiaberta perante toda a imensidão do abecedário.
Nessa altura, escrever era entregar-me à difícil tarefa de desenhar as letras, com a mãozinha a tremer, no receio de sair das duas linhas paralelas ou de deixar cair um borrão de tinta naquelas folhinhas finas e quase transparentes.
Escrever Cópia e depois continuar o pequeno texto, com muito cuidado a fim de poder chegar à melhor parte - a do desenho.
Com o tempo, a caligrafia foi melhorando e a segurança também.Depois das cópias vieram as composições e mais tarde os poemas, os textos, as tentativas literárias.Tudo muito secreto, com muito medo de mostrar, tudo muito fechado em gavetas, escondido em dossiers.
Mas o tempo passa e a vergonha também.Continuo a achar que a parte mais simples é a da ilustração, sei que tudo o que sei é que nada sei, mas não desisto.