quinta-feira, abril 20, 2006

A nossa casa

Certos dias, pelo cair da tarde, Inês gostava de se sentar debaixo do alpendre, numa silenciosa observação da natureza. Em meados de Abril, as laranjeiras do quintal adornavam-se de frutos doirados e de pequeníssimas flores. As níveas pétalas espalhadas pela cercania , lembravam paradoxalmente um resto de Inverno, que as tangerineiras, a nogueira, o damasqueiro e o loureiro, logo negavam no seu esplendor primaveril. O tanque da roupa há muito que deixara de cumprir o seu destino e servia agora de abrigo a famílias de insectos e de folhas mortas e só o velho poço continuava a dar água para a rega. Cresciam os cravos túnicos, as cravinas, as despedidas de verão, as rosas, os narcisos e as túlipas de permeio com os coentros, a salsa , várias qualidades de alface, pés de couve , algumas favas e muitas urtigas. Esta mistura curiosa de árvores, plantas, flores e legumes, dava ao quintal a impressão de uma certa liberdade selvagem, onde cada coisa nascia, florescia e morria sem necessidade de grandes intervenções humanas. Até o próprio tempo, ora fresco, com ventos sibilando da terra, “vento de igreja, prenúncio de chuva” como dizia o tio Alfredo, ora com raios solares vivos e quentes apetecendo passeios pelos pinhais, desobedecia a todas as regras.

Inês deixava cair o livro sobre o regaço, recostava-se na cadeira e semicerrava os olhos. Imaginava o casal no tempo dos avós e dos tios, quando o pátio ainda não tinha sido cimentado e as galinhas debicavam restos de sementes e de migalhas pelo chão. Imaginava a criançada a jogar ao arco e à macaca, enquanto as mães esfregavam a roupa na pedra do tanque e o cheiro a sabão azul e branco se espalhava pelo ar. Até lhe parecia ouvir ainda os cãezitos, que ladravam aos poucos carros e carroças que passavam na estrada principal e o sino da igreja a tocar para o terço do mês de Maria..

Nestas tardes, Inês olhava o marido, que parecia sorrir nos seus sonhos de pequenas sestas, meio sentado, meio deitado, no cadeirão a seu lado e pensava que, um dia, quando se reformassem e tivessem alguns netinhos, haveriam de restaurar o velho casal. Este local respirava a paz dos anjos e precisava das gargalhadas de pequenos malandrecos para lhe devolver a alegria.

- Amor, está na hora de irmos para casa. A rapaziada deve ir lá jantar como todos os domingos.

- Vamos sim, respondia Inês. Vamos até casa.

E na sua cabeça rodopiava a ideia, cada vez mais insistente, cada vez mais feita certeza de que “ a nossa casa é aqui, meu querido”.

2 comentários:

as velas ardem ate ao fim disse...

Obrigada esta lindo,

Clotilde S. disse...

Agradeço a tua visita. Volta sempre!