sábado, outubro 10, 2009

O poeta e os demais



Quando um poeta escreve,
não escreve apenas com a mão,
com o punho.

Na verdade,
um poeta não escreve como as demais pessoas.
Um poeta escreve principalmente
com a alma liquefeita que lhe corre nas veias.
Os demais escrevem o que sentem,
o que vêem, o que cheiram,
o que provam, o que palpam.

Um poeta emociona-se. Escreve. E ponto.

Os demais amam e escrevem cartas de amor
que cheiram a violeta ou a jasmim.
Escrevem cartas e rasgam-nas,
deitam-lhes fogo,
lançam os pedaços de papel
aos quatro ventos, quando deixam de amar.
Os demais.

Um poeta apaixona-se. Um poeta sofre. Escreve. E ponto.

Os demais descrevem, narram,
traduzem, argumentam,
contrapõem,
quando escrevem.

Um poeta vibra. Escreve. E ponto.

Usam canetas de tinta permanente,
corrector especial,
papel de boa marca,
os demais, quando escrevem.

Um poeta só quer escrever. Escreve. E ponto.

Com velhos lápis,
esferográficas roídas,
no canto da toalha,
no lenço de papel,
na fralda da camisa,
no tampo da mesa,
na parede gasta,
na vela do barco...

Os demais escrevem sempre para alguém.
Para quem amam.
Para quem estimam.
Para quem respeitam.
Para quem odeiam.
Para o chefe.
Para a secretária.
Para o Senhor Presidente da República.
Para o encarregado das obras de reconstrução
da velha mansão da herdade dos cardos.
Para a mãe que não vêem há três anos
e de quem têm saudades.
Para a filha que se esqueceu
de levar a caixinha de pílulas Minigeste
quando foi de férias com o namorado para a Costa da Caparica.
Para o tipo que se está nas tintas
para a qualidade das tintas
que lhe vendeu quando o patrão o despediu e
deu meia dúzia de latas a cada empregado
em pagamento do décimo terceiro mês.
Escrevem sempre, os demais, para alguém.

Um poeta escreve para o mar,
para o céu, para as nuvens,
para o vento, para o fogo,
para o sol, para as estrelas.

Um poeta escreve pela paz,
pela igualdade,
pela justiça,
pela liberdade,
pelo Amor,
pela Terra,
pelos demais.

Sim. Um poeta escreve pelos demais.

Um poeta é poeta. E escreve. E ponto.

Mas um poeta também vive
e sacrifica-se
e passa mal
e tem doenças
e sofre
e geme
e grita
e morre
como os demais.

Um poeta morre como todos os demais.

No entanto, quando um pobre poeta morre, os demais ficam mais pobres.




10 comentários:

angela disse...

Clotilde
um poeta é um tradutor do mundo ilegivel.
e ponto.
lindo poema
beijos

Paula Raposo disse...

Sem dúvida!! Muitos beijos.

João Paulo Proença disse...

Clotilde:

Belo!
Fabuloso!

É mesmo muito bonito!
É das coisas mais bonitas que tenho lido nos últimos tempos

Obrigado.

ESte irei imprimir e guardar aqui num cantinho especial.

Obrigado

João P.

Unknown disse...

Clo

Amo a tua poesia. Mas deixa-me dizer-te que este poema é o maior de todos os que li de ti. Nem quero comentar. Só lamento não estar ao pé de ti! É que sobre ele dir-te-ia tanta coisa! E acho que tu sabes que diria. E sei que sabes aquilo que te diria. Não que eu seja grande poeta não. Mas sou poeta que compreende o que o teu poema diz.O teu poema fala sobre a janela da alma, sobre a sua voz intemporal, sobre o Amor Incondicional, sobre os valores eternos, sobre os desapegos dos egoismos, sobre as portas abertas às mensagens dos anjos, sobre as asas que voam-mas-que -nunca-desprezam - o- cheiro-da terra... Se eu estivesse junto de ti, talvez comentasse o teu poema. Assim, apenas digo: que lindeza de palavras......
.... diáfanas, mas com raízes profundas na nossa terrena, mas sublime humanidade!

Abraço

poetaeusou . . . disse...

*
Bravo Clotilde,
adorei !
,
conchinhas, deixo,
,
*

Anónimo disse...

É verdade, um poeta,uma poetiza, possuem um dom especial, e que os diferenciam dos demais. Por isso que suas obras são imortalizadas, atravessando muitas gerações. Os demais, escrevem por vêzes muito bem, e se forem sábios, saberão dar o devido valor a estes seres iluminados, mensageiros da paz, dos sonhos, do amor, tais como você.
Muitos beijos

Madrigal disse...

Um poeta escreve e ...ponto. Escreve porque essa atitude é um imperativo que habita as caves da sua emoção; escreve porque, dessa forma, mitiga as dores que lhe forram a alma; escreve porque, através das palavras - as impressões digitais da sua comoção - alivia-se, metaforizando aquilo que, dito doutra forma, seria ainda mais cruel e impossível de suportar...

Beijos poéticos

Jorge

Maria P. disse...

Muito bem, é isso mesmo.
Gostei.

Beijinho, Clo*

Clotilde S. disse...

Obrigada pelas palavras boas com que enriqueceram este meu poema.

Um beijo no coração de cada um de vós.

Clo

Clara Margaça disse...

Embora uma poetisa pequenina, li-me em cada letra desenhada nesse poema maravilhoso.
Um beijo