quarta-feira, janeiro 14, 2009

Escrever, 1998



Tirado da gaveta, onde há alguns anos dormia.

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Escrever para me falar e me ler.
Escrever para me contar e me dar.

Escrever talvez tão somente pelo
prazer de deixar correr a mente
neste rio de tinta escura,
indecisa cor entre entre o azul e o negro.

Escrever para exorcizar os medos,
o sufoco,
o grito que povoa
a alma perdida na ausência.
Escrever para colorir as cinzas,
reavivar os tons diluídos dos dias.

Escrever. Te.
Escrever. Lhe.
Escrever. Vos.

Um poema.
Um conto.
Um romance.

Talvez apenas uma carta.
Com apenas uma folha.
Talvez apenas um único verso
feito das mil palavras
que a minha boca cala,
que o meu peito emudece.

Escrever na urgência.
Nesta urgência de hoje,
deste momento presente.

Escrever aqui.
Escrever agora.
Escrever já!

Escrever longe da máquina,
longe do texto efémero
que se apaga deixando
apenas um rasto de luz
electrizando a memória.

Escrever com o punho,
com a ponta dos dedos
trémulos e febris.
Escrever.

Escrever sem ter de descrever.
Escrever a emoção.
As intensidades.

Um saco.
E nesse saco uma alma.
Uma rosa gotejante de sangue rubro.
Uma voz
que se escreve na tinta negra,
na letra hesitante
entre o ângulo e o círculo.

Uma voz que se ouve
na tecla do piano,
na chuva que cai,
no poema que grita
"Vem!".

Uma voz que se lê
nas páginas sussurradas
da escritora.
"On dirait qu' ils se ressemblent".
Semelhanças.

Uma alma!
A alma de quem escreve.
A alma de quem lê.
Espelhos.
Reflexos.

Escrever agora
a exaltação em crescendo!
Escrever a insuportável ideia
da perda,
da ausência,
do perfil mesclado com as sombras
que se deixa esquecer
para regressar
mais forte.

Escrever a dúvida.
Escrever a pergunta.
Escrever na recusa da resposta.
Escrever na teimosia.
Escrever na gaguez,
no medo,
na reticência,
no risco.

Escrever " não acredito" sabendo que acredito.
Escrever " não quero" sabendo que quero.
Escrever " não sei" sabendo que sei.
Escrever mentindo sabendo que me minto.

Escrever a mágica combinação dos números.
Contar as letras, as datas.
Contar o capricho,
a ironia do destino,
a marotice
dum qualquer deus desconhecido.

Julgar-me marioneta ignorando
quem me puxa pelos cordéis,
quem anima o meu corpo,
quem me faz viver.

E sentir-me tantas vezes
palhaço de olhar triste.

Sentir-me Colombina
chorando o seu Pierrot.

Escrever no acordar dos dias.
Abrir a janela e gritar:
"Acorda!"
Recolher no silêncio da casa e gemer:
"Morre!"...
Escrever o insulto:
Velha! Parva! Estúpida! Gasta! Louca!
Escrever a incredulidade:
não é possível!...não pode ser possível...

Escrever o mar.
Escrever aquela gota
que nasceu leve,
transparente
e se fez onda,
maré alta
que me me chama
e me enrola
e me arrasta
e me deixa morta
no areal.

E continuar escrevendo na doença,
neste mal (bem) que me consome.

"Estás magrita!" disseram-me há dias.

A doença da escrita
na palidez do rosto,
no olhar ausente.

Escrever a dor da doença
que se sente.

Tremo.
Queria parar de escrever
e não consigo.
Não!
Não tremo de frio.
Não tremo de medo.
Tremo.
Assim.
Levemente.
Estremeço.

E escrevo sem parar.
Sem reflectir,
sem escolher a palavra,
sem pensar na pontuação...

Escrevo com quem desabafa.
Como quem tem de falar.
Como quem precisa gritar:
"Ouve-me!"

E sinto subir o pranto,
o aperto..
Já não estremeço.
Agito-me da cabeça aos pés.
A letra foge,
nublada.
Enlouqueço.

E agora que escrever mais?
Que dizer mais?
E agora?
Que fazer?

Talvez recostar-me na cadeira.
Acender um cigarro.
Olhar através da janela e pensar:
Porque não escrever?
Porquê parar?

Clotilde S.

3 comentários:

Maria disse...

Gostei deste poema. Irei ler os outros.
Como é que eu te perdi, e me encontras depois de tanto tempo?
Talvez descubra na leitura que vou fazer a seguir...

Gostei de te ver por lá.

Um beijo com cheiro a
canela e jasmim...

Menina Marota disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Menina Marota disse...

Porquê parar?

Se a poesia te está na alma e te sai com esta fluidez como a água límpida que corre num rio?

Não páres NUNCA!

Grata por este momento.

Um abraço e um EXCELENTE 2009 ;)